sábado, 30 de maio de 2015

mundo rosa

acabei de ver o ultimo episódio da décima primeira temporada de Anatomia de Grey. percebi porque a minha amiga K desconfia que poderá não haver mais temporadas. de qualquer forma, a Shonda, nalgum dia vai ter de se perguntar "até quando?".

antes da licença de maternidade do S acabar, senti medos. vários já tinha experimentado com a D - quem a vai tratar melhor que eu, como vou passar o dia de trabalho, eu não desejaria ficar em casa...? e houve os medos relativos à multiplicação - a minha mãe conseguirá estar bem com os dois, como vou conseguir despachá-los para conseguir dormir o suficiente, ou para sair de casa e chegar a horas no trabalho, eu não deveria ficar em casa, ...? mas houve também os medos do mundo cor de rosa - estar quase um ano com baixa e licença em casa significou não precisar de sair quando estava muita chuva, sentia muito calor, não precisar de me lembrar do stress do dia a dia do trabalho, nem das pessoas ou de tudo o que não gosto. significou ler muito e ver TV como nunca tinha visto. ler blogs e artigos bonitos sobre quem trabalha por conta própria e consegue, quem cria coisas com as próprias mãos, quem tem muitos filhos pequenos e mantém-se sã. os programas da manhã (quem diria?!?!) em que mudava quando não queria saber de algo mau, a Anatomia de Grey, Parenthood, Uma família muito moderna, Scandal, The wife, The trophy wife, tantas outras - e se acredito demasiado nas pessoas, na sua bondade e boas intenções, se me vêem como parva, se me vejo como parva?

mas ver muito mundo surreal tem-me mesmo ajudado a saber como agir no mundo real.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

a pensar nas férias

fui comprar soutians. metida nos cubículos com espelhos enormes e luzes fluorescentes em que tudo se vê ao pormenor, assustei-me com a minha barriga. preciso mesmo começar a fazer exercício. também precisava dum bikini, tinha gostado de um numa loja e fui. mas cheguei e decidi que ir também por outro caminho. fato de banho. apesar de hoje em dia haver vários engraçados, faz-me sempre pensar em mulheres velhas. não só pela idade mas também por se esconderem, não aceitarem quem são por dentro e fora. mas, a apenas dias das férias, também tenho de assumir que estou a emagrecer mas ainda não estou bem, que foram duas vezes nove meses e com apenas 22 meses de diferença, de pele esticada e comigo toda de outro tamanho. tenho de assumir que neste momento continuo a não cuidar de mim, mas tratar-me bem ajuda-me a cuidar de mim. e não é que saí de lá com algo moderno, sexy mas sem demasias, delicado até. vejo-me perfeitamente a correr atrás da D e a pegar no S, com ele aos saltos, e continuar impecável e confortável. e não é que comprei um trikini?

quarta-feira, 6 de maio de 2015

o parto caseiro do S (finalmente)

tudo começou terça-feira, oito de julho de dois mil e catorze pelas dezassete horas. consulta de obstetrícia às trinta e oito semanas e um dia. toque com descolamento da membrana. soube perfeitamente o que a obstetra estava a fazer sem ela dizer. mas sem qualquer dor. fê-lo porque o colo estava pronto, já havia dilatação, o miúdo estava pronto, era o segundo filho, e nós estávamos prontos. fomos buscar a D à avó, regressámos a casa, o A deu-lhe banho e preparou o jantar enquanto eu a vestia ou fazia pequenas coisas, já não me lembro. sentia-me esquisita, tal como me senti todo o dia. comi o mínimo só porque sabia que tinha de ser. à mesa reparei que o incómodo era um pouco mais do que incómodo. tentei pensar no respirar corretamente e esquecer o resto. um bocadinho de mimo e despachámos a cachopa para a cama. mas ela parecia adivinhar que era a última noite como filha única, não se queria deitar. eu estava muito cansada, mudei de roupa, tirei as lentes e levei a D para o sofá comigo, era um dia isolado e a D iria adormecer ali no sofá, junto à mãe e à barriga da mãe com o mano lá dentro, uma última vez.


não. tudo começou quando sonhámos com uma família de quatro. pensando nisso, parece que sempre o soubemos. e talvez pela D ter demorado a chegar, e talvez por me sentir tão abençoada com toda a saúde e perfeição dela, tive o pesadelo, acordada ou a dormir, já não sei, em que só tinha direito a um filho perfeito e com saúde. tentei ignorar este sentimento quando o senti pela primeira vez, tentei ignorá-lo quando decidimos tentar engravidar novamente, tentei ignorá-lo enquanto pensava que iria ser igualmente difícil ou demorado engravidarmos sozinhos. mas engravidei em tempo pacífico. na segunda ecografia, cerca das oito semanas, em que já se consegue ver o corpo do bebé, estava com medo de olhar para o ecrã. a minha pergunta à obstetra foi “tem dois braços e duas pernas?”, disse-o com riso nervoso. parecia que estava a brincar e não emendei, mas não me sentia nada a brincar. algumas perguntas deste género foram surgindo ao longo das várias consultas. falei muito com Deus e ia eliminando os vários receios nas várias conversas. tinha dois braços e duas pernas, o rastreio bioquímico demonstrava perfeição, todas as medidas das ecos diziam que estava tudo bem. mas sei que nunca fiquei completamente descansada, e com todos estes elementos, sobrava o parto – o parto parecia ser o que iria ditar a tal imperfeição que o meu cérebro teimava confirmar. no dia oito de julho de dois mil e catorze perguntei à obstetra que tipo de problemas podiam surgir no parto que prejudicassem o bebé. como é que eu deveria agir se ocorressem, quais as estatísticas atuais em Portugal... eu sabia as respostas (à exceção da última), mas precisava que ela me dissesse. ela respondeu a tudo pacientemente, com um olhar de mãe de dois, que já sentiu o mesmo.

não. tudo começou ao ler a Luiza e outras mães de partos naturais. sempre me atraiu o parto dentro de água, mas passou-me quando a minha enfermeira da preparação para o parto nos falou dos riscos, especialmente, se houver necessidade de mover a mãe quando o bebé já está em determinada posição. mas respeito imenso partos sem epidural ou outras ajudas e uma parte de mim sempre quis experimentá-lo. não sei bem a razão. nunca tive uma visão cor de rosa do parto, antes pelo contrário e nunca achei que teria algum tipo de experiência quase sobre-humana. no entanto, com o parto da D, fiquei com a certeza de ser possível termos um parto calmo, estarmos concentradas, aproveitarmos, mantermos a consciência em perfeito juízo, não nos passarmos, aproveitarmos cada momento daquele momento em que trazemos um ser humano, nosso, ao mundo. mas ter a coragem de decidir ter um filho sem drogas, isso é outra conversa. e sempre soube que iria sempre querer e pedir epidural.

afinal, tudo começou quando comecei a ter alguns receios sobre o parto. coisas físicas mesmo – no parto da D, a epidural retirou a dor da contração, mas não me anestesiou a zona da vulva e vagina como deveria. tentei perceber porquê e fiquei com uma indicação, quando levasse o último reforço de epidural (aquele que pedimos quando já sentimos necessidade de fazer força), levá-lo sentada e não deitada para o medicamento fazer melhor efeito na zona vaginal. e outro receio físico, como ficariam as minhas costas após um segundo parto? após a D nascer. os meses foram passando e a dor da ciática não passou (nunca tinha tido antes de engravidar), aliás, após ela nascer piorou em relação à gravidez, ficou diferente. apanha o calcanhar, provocando dores e formigueiro. o pé e a perna ficam dormentes nos primeiros minutos após sentar-me. ficar sentada é um sofrimento, e o meu trabalho é inteiramente ao computador. quando engravidei do S, achei que devia pedir opinião sobre impactos dum segundo parto na coluna. os médicos não foram unânimes e supostamente, se o problema que tenho piorasse com o parto, alguém escreveria o documento ao hospital - que por ser público, não iria fazer uma cesariana sem recomendação escrita e justificada do médico. mas após falar com a minha enfermeira da preparação do parto, e após ela levar o último raio-x e tac para colegas dela verem, decidi que não iria preocupar-me mais. não queria cesariana. não tinha conhecimento do futuro para saber se realmente ficaria pior ou se aquilo que me faz mal é a gravidez ou o parto.

não. tudo começou quando me apercebi de certas diferenças entre gravidezes. sou a última de quatro irmãos, sou aquela que tem poucas fotos de infância, sou aquela que tem o álbum de bebé com uma ou outra foto solta (nem coladas estão) e praticamente só com o nome escrito. não quero isto para o meu S, não quero este tipo de diferenças entre os meus dois miúdos. mas, na prática… não tirei muitas fotos durante a gravidez, não consegui conversar tanto, dar atenção, colocar música para a criança ouvir, ler. até a eco 4D não conseguimos fazer, porque o miúdo estava em posição desfavorável, nem tratar da criopreservação das células estaminais (que me informaram erradamente que o banco público ainda estava encerrado). então, o miúdo decidiu – se não tenho muitas fotos, se não tenho 4D, vou ter uma história boa, muito boa!

ali no sofá, de lado, com a D enroscada a mim, senti uma contração. pequena. respirei fundo. se me concentrasse e respirasse pelo diafragma e pelo útero, a contração acalmava. fi-lo com alguma facilidade. mas logo de seguida outra. e outra. pego no telemóvel e espero pela próxima. cerca de dois minutos e meio de intervalo. o tipo de dor não deixava dúvidas, grave na zona do útero, aguda na zona dos rins, vem e vai. já tinha sentido isto, estava a começar, o nosso menino estava a chegar. grau de dor: razoável (eu sei que é de zero a dez, mas não sei medir). disse ao A o que se passava, devia rondar as vinte e duas horas. aguentei-me, não sei quanto tempo, levámos a D para a cama dela. faltava preparar algumas poucas coisas, as minhas lentes de contacto e óculos, os biberons da D, para levarmos para a minha mãe, coisas que usamos diariamente e por isso não poderíamos preparar com antecedência. disse ao A para telefonar ao chefe e dizer-lhe que não iria trabalhar no dia seguinte. disse ao A que deveríamos ir para o hospital de manhã. levantei-me do sofá para ir preparar as tais últimas coisas. instantaneamente percebi que afinal, a dor não era razoável. pedi ao A para telefonar à minha mãe, dizer-lhe que íamos levar a D e estaríamos lá dentro de cerca de uma hora.

ao olhar para trás, acho hilariante o facto de ter estado sempre na tentativa do controlo. a situação mudava e novo plano surgia na minha cabeça, sempre muito nítido e lógico, e lembro-me de ficar feliz pelo meu cérebro estar em funcionamento.

tentei contar a duração da contração, cerca de vinte segundos mas senti que não contei bem. chamei o A e pedi-lhe para contar, trinta e dois segundos, por aí. e ele contou cada um em voz alta. eu a respirar fundo, queria muito que ele se calasse, mas se dissesse na altura, a coisa não ia correr nada bem. quando passou, pedi-lhe para contar outra vez

“conta só para ti, por favor”. assim foi, trinta e cinco segundos.

em poucos minutos, estava eu, feita barata tonta, nos últimos preparativos, sem conseguir pensar corretamente, e, cada vez que vinha uma contração, baixava-me. se estivesse ao pé do sofá ou da cama, ficava de joelhos apoiando os braços, se não, ficava de gatas. o respirar fundo era sonoro, incomodava-me a mim própria. já não conseguia respirar com a correção necessária ao ar chegar aos músculos do útero. pedi ao A para quando estivesse com uma contração, fizesse pressão nos meus rins, muita pressão. pedi ao A para não falar comigo, a não ser que fosse muito necessário. pedi ao A para não falar comigo se me visse de gatas. estava a tornar-se insuportável e foi um alívio quando finalmente os preparativos terminaram. pedi ao A para ir comigo à casa de banho, que ia tomar um duche (lady que é lady…), foi muito rápido, praticamente passei-me por água, tinha cada vez mais noção que tinha que me despachar. saí do duche, voltei a pôr as lentes de contacto – nem pensar que o meu filho ia nascer e eu não o ia ver bem!

- já está, vai buscar a D.

- a que manta a enrolo?

fui ao quarto dela para vermos juntos a melhor manta, tentava fazer tudo o mais rápido possível, estava com o constante sentimento de urgência e só queria sair de casa a caminho do hospital. mas há uns minutos que achava que ia correr mal, com aquele tipo de dor, no carro, mas não sabia o que fazer. saí do quarto e no corredor, senti uma ligeira pressão e depois água.

- ai amor.. as águas rebentaram.

não sei se foi nesse segundo, mas decidi que os planos tinham de mudar.

- A, mudança de planos. vai tu sozinho levar a D à minha mãe, eu telefono para o 112 e eles vêm-me buscar. encontramo-nos no hospital.

peguei no telefone, marquei 112. sentei-me na sanita, como se as águas rebentarem significasse que tinha que fazer xixi. o A saiu só quando me viu a falar com o INEM, com a D embrulhada no cobertor quentinho. mudei de cuecas.

esta decisão, como as outras dessa noite, foram para mim as mais lógicas possíveis. antes das águas rebentarem, comecei a questionar se aguentaria a viagem de carro até ao hospital, em posição sentada e com contrações já a cada minuto. mas na altura, era isso que nos fazia sentido e por isso nem deixei que esse pensamento crescesse, tinha de fazer o que tinha de fazer. mas ao rebentar as águas, percebi que já não conseguia controlar tudo, não estava nas minhas mãos. não me passou pela cabeça que o pai do meu filho e o meu companheiro de vida, poderia não estar ali para me apoiar e para ver o filho nascer. ou que não deveria ficar sozinha. muito menos fiquei nervosa ou tive medo. não tive tempo. não era opção. apercebi-me depois que, até ao momento em que o A e a D saíram de casa, eram eles a minha prioridade, e não eu ou o parto. sei que o S era prioridade, mas em parte sabia que não tinha de me preocupar. apercebi-me depois que sentia ser absolutamente necessário a D não estar exposta ao que se ia passar, e que não podia preocupar o A com o que estava a sentir. se ele soubesse, podia preocupar-se comigo, quem sabe, questionar as minhas decisões. tudo isto inconsciente.

- boa noite, estou grávida de trinta e oito semanas e um dia. fui hoje à obstetra que fez o toque e só à pouco me apercebi que já estou com muitas contrações. estou sozinha em casa.

ajoelhei-me no chão. comecei realmente a aperceber-me do peso do que se estava a passar no meu corpo.

- preciso que me diga de quanto em quanto tempo tem contrações e a duração. tem noção destas coisas?

queria responder rápido mas as palavras não saíam corretamente. queria acabar toda a conversa antes da próxima contração. lembro-me de ouvir muito a minha respiração.

- à bocado não chegava a dois minutos de intervalo e a última vez que contei a duração, passava os trinta segundos.

- preciso que se deite com o lado esquerdo para baixo e com uma toalha entre as pernas. não faça força. os bombeiros estão já a ir.

lembro-me de estar de gatas, com o telefone no chão, e como não me lembrei de ligar o alta-voz, eu falava perto do chão. só me lembro do respirar a ofuscar as palavras. desliguei. estiquei-me mesmo ali, no chão, à saída da casa de banho, num tapete redondo grande. o corpo ficava em cima, as mãos e pés sentiam o frio do chão. perfeito. mas quando veio a contração seguinte, já não consegui não gritar e consegui perceber o descontrolo em que estava. outra e outra contração. tudo muito forte e intenso. será que os meus gritos são audíveis? e o INEM que não chega? começar a sentir vontade de fazer força, não saber se posso fazer força e com isso, fazer mal ao meu filho.

novo plano. chamo a minha vizinha da frente, ela vai buscar um dos meus vizinhos enfermeiros (são um casal), não faço ideia da especialidade deles, mas hão-de saber ver a dilatação e dizer-me se posso ou não fazer força.

arrastei-me para a minha porta. felizmente o A tinha deixado no trinco e abri facilmente.

- J, J.. J.

a minha voz não saia no volume desejado. a porta deles parecia distante. estive sempre de gatas. arrastei-me para o móvel, agarrei o telemóvel e liguei à minha vizinha era 00:33 de dia nove de julho de dois mil e catorze. não atendeu mas eu tinha ideia que os tinha ouvido em casa. podiam estar já a dormir. recomecei a chamar, tendo certeza que tinha de ir até à porta e talvez tocar à campainha – não o queria fazer para não acordar o filho da idade da D.

abre parêntesis.
do lado de dentro da porta, o meu vizinho S, que tinha chegado muito tarde do trabalho, pensava mal do filho. “este puto, logo hoje não dorme.. e não pára de chamar pela mãe”. parou. e recomeçou “J, J.. J”. “mas porque é que o miúdo chama “J” em vez de “mãe”?”. decidiu ir vê-lo. de caminho passou pela porta de entrada e reparou que o som vinha de fora e não do quarto do filho. abriu a porta.
fecha parêntesis.

graças a Deus! pareceu-me que ele ficou uns segundos parado antes do “J, anda cá depressa” e quando a minha vizinha chegou, pareceu-me que ela ficou uns segundos parada antes de se aproximar de mim.

- o que precisas?

falei-lhe do meu plano dos vizinhos, ela concordou.

- a D?
- o A foi levá-la à minha mãe.

contei-lhe porque estava ali sozinha. tinha de repetir tudo o que dizia, falava muito baixo e lento. devem ter achado que estava desorientada porque perguntaram muitas vezes se eu tinha mesmo telefonado para o INEM. a J foi ao quinto e ao sexto andar (não temos certeza do andar onde moram os vizinhos enfermeiros) regressou rapidamente. ninguém atendeu. não tocou muitas vezes porque ouvia os meus gritos de lá e achou que não valia de nada insistir. entretanto o vizinho S tinha telefonado ao INEM, confirmou a minha chamada, os bombeiros tinham saído há 15 minutos, deviam estar a chegar.

dias depois, cruzando a história com a minha vizinha, apercebi-me que a partir deste momento a minha memória é muito selecta. parece que existe o que eu desejei fazer, e existe o que eu fiz.

lembro-me dela ter ido buscar almofadas e pedir-me para me deitar, não quis, fiquei o tempo todo de gatas. não queria gritar, mas não conseguia. mas não me preocupei com isso, nem com estar de gatas ali, nem na J não ser alguém muito próximo. na verdade, ser ela foi mesmo a pessoa que tinha de ser. somos vizinhas que falamos com alguma frequência e temos à vontade ganho por termos todos idades próximas e termos estado grávidas da primeira vez ao mesmo tempo. os miúdos e o condomínio aproximaram-nos, brincamos uns com os outros mas não somos íntimos. isto fez com que não me preocupasse com ela poder assustar-se com algo ou bloquear ou sofrer pela minha dor (como aconteceria se o A estivesse ali comigo), mas fez também eu não estar demasiado à vontade, inconsciente fez-me sentir muito responsável por lhe estar a pedir ajuda, e penso que isso me ajudou muito a estar concentrada na respiração e em escutar o meu corpo.

sem ter de lhe pedir, a J pressionava com muita força os meus rins a cada contração. dizia para eu ter calma. o A sabia que nunca jamais deveria dizer-me “tem calma” durante o parto, mas ser ela a dizer não me perturbou. ouvi-a dizer muitas vezes para não desmaiar. eu queria brincar e dizer “eu nunca desmaio!” mas parece que saiu “eu nunca desmaiei”

- se te sentires a desfalecer, deita-te de lado, não caias em cima da barriga.

porta de entrada aberta, eu ali mesmo na zona da porta. lembro-me dela estar ao pé de mim a pressionar os rins, a apoiar, a repetir coisas. mas lembro-me dela estar dum lado para o outro, como que a saltitar, a tentar descobrir o que fazer. não sei vários detalhes e a sequência de muitas coisas. lembro-me do vizinho S dum lado para o outro, com o telemóvel na mão, a andar rápido entre nós e a cozinha deles, a tentar fazer contas ao tempo, entre a altura estimada do meu telefonema e a hora actual. lembro-me de eu querer dizer coisas, piadas, desanuviar. mas sentia a voz moribunda. dentro da minha cabeça, havia muitas frases mas quando tentava pô-las cá para fora, tudo se arrastava. como já me aconteceu noutras situações de grande stress ou grande dor, digo muitos disparates e canto alto, mesmo não conhecendo quem está à minha frente. lembro-me de pensar que estava de gatas à frente do meu vizinho, e que não queria nada estar de gatas à frente do meu vizinho. sabia que era a única posição que aguentava (apercebi-me muito mais tarde que possivelmente foi a posição que me ajudou a não ter o S antes).

sentir uma criança a querer nascer. sentir cada contração. sentir dor indiscritível. sei que na altura a poderia descrever. sei que se pensar muito consigo saber. a parte grave e aguda ao mesmo tempo. não ter tempo para respirar e acalmar entre cada contração, mais do que isso, para me concentrar. parte de mim estava calma, consegui fazê-lo, tal como aconteceu com o parto da D, por não estar preocupada com o segundo seguinte. mas parte de mim achava que não aguentava muito mais. pouco tempo entre cada contração, já menos de um minuto. ter imenso medo de fazer força. gostava de dizer que tinha tentado escutar o meu corpo, mas não tinha a informação mais importante – tinha a dilatação completa? podia fazer força? iria fazer mal ao meu menino? felizmente a dor também afastava qualquer pensamento, a contração subia rapidamente, tentava estar concentrada e respirar, mas na fase final da contração, era impossível não fazer força. como numa dor de dentes, que quando damos por nós, estamos a fazer muita força para fechar a boca, parece que acalma a dor, até o momento em que temos de deixar de fazer força e sentimos muita dor. lembro-me de dizer à J que não estava a conseguir não fazer força. lembro-me de dizer em voz alta “Deeeeeeeeeeeeus”.

lembro-me da força que estava a sentir, sabia que era a cabeça do S a descer. aquilo que a D parecia não querer fazer, estando com o braço à frente da cabeça não descia convenientemente. com o S, eu a tentar não fazer força, e a criança descia quase sozinha. e a contração parava. tentava respirar mas respirar doía. e se não tivesse dilatação e já estava a fazer força, e se fizesse mal ao meu menino, e se a ambulância tivesse tido algum acidente e ninguém aparecesse rapidamente? fracções de segundo. e vinha outra contração. não querer fazer força. tudo de novo.

- JÁ CHEGARAM os Bombeiros.

ouvimos o vizinho S, que começou a descer as escadas para lhes indicar caminho. na mesma altura, a J correu para a minha janela da cozinha para os ver, acho que ela própria não sabia o que ia lá fazer. “PUM”. comecei a rir-me. a J achou que a janela estava aberta, e quando eu voltei do hospital, ela ainda sentia o nariz dorido.

estavam a chegar e eu conseguia aguentar mais um bocadinho. o A telefonou e a J atendeu, tinha chegado ao hospital, à procura de estacionamento. dentro da minha cabeça, pensamentos controversos. parece que acreditava que ia para o hospital, com relativa calma, com ajuda dos bombeiros chegaríamos lá, meio à pressa, o A iria encontrar-nos facilmente e juntos íamos passar a última fase para vermos o nosso Pulguinha nascer. mas no fundo sabia que não, tinha de saber se podia fazer força.

dois bombeiros entraram na minha casa, no mesmo momento calçavam luvas roxas. uma menina (uma senhora com ar de menina) e um senhor. “olá boa noite” com um grande sorriso e calma interessantes, bem, lembro-me de reparar que a bombeira parecia mais nervosa que eu, mas na altura não pensei nisso. pediram toalhas, eu tentei dizer à J onde estavam, mas ela já tinha ido a casa dela buscar.

nada como os filmes, que pedem água a ferver, toalhas molhadas, qualquer coisa para morder. nada.

na minha cabeça, acho que lhes disse:

- estou já com muitas contrações e seguidas e já houve vezes que tive de fazer força mas não sei se já posso fazer. preciso saber se já posso.

a minha vizinha diz que eu lhes disse:

- [qualquer coisa como] vamos já para o hospital, certo?

as toalhas foram colocadas no chão, lembro-me do bombeiro perguntar se eu não queria ir para a cama, disse logo que não. a ideia de me mexer era assustadora, e ia mesmo abrir a possibilidade de sujar o colchão e edredon e tudo? cama? não!

eu ao tentar deitar-me de barriga para cima, e vem nova contração. lembro-me que com tudo o que estava a acontecer, consegui não fazer qualquer força, feliz por estar concentrada. lembro-me de abrir os braços (ou imagino-me a abrir os braços qual Amália) e “drogas, dêem-me drogas!”

- olhe vou ser muito sincera consigo, não temos drogas que a ajudem neste momento, o pouco que temos não faria muito e já não há tempo. o bebé vai nascer aqui. – disse a bombeira que se ajeitava à minha frente, o bombeiro ligeiramente atrás e ao lado, mesmo à porta da casa de banho. aí percebi o nervosismo da menina bombeira – era ela que ia fazer o parto.

peço à J para telefonar ao A e logo de seguida oiço-a “A, vem para casa que o S vai nascer aqui”.

e nova contração.

- faça força, levante as pernas, está a nascer..

mas o que é que eles sabem? não percebem nada disto, eu estive uma hora e meia só na fase de expulsão no parto da D, após mais de 48 horas de contrações. acham mesmo que vai tudo acontecer na primeira contração após chegarem? também sei que muita da demora foi pela D vir com a mão à frente, eu fazia força e quando parava, a miúda subia, mas não há-de ter sido tudo por isso.. o meu corpo não é assim tão rápido. e a epidural… aquela dor não era suportável sem epidural e lembro-me de dizer “sem drogas não consigo”.

e nisto a J, que tinha os joelhos nos meus ombros a amparar-me

- está a nascer Rute, que momento lindo. [ouvi as lágrimas na voz dela e pensei que o A não se sentiria tão mal por não estar, alguém estava mesmo a fazer o papel dele, com choro e tudo. mas mais rápido do que este sentimento, o que ouvi mesmo, praticamente ao mesmo tempo que a frase dos bombeiros, foi a J a dizer:]

- ESTÁ A NASCER RUTE, QUE MOMENTO LINDO.

a minha vizinha J! a J eu sabia que não sabia. que o que ela percebe de partos, é o semelhante ao que eu percebo dentro da experiência de já ter tido um filho. portanto, medicamente falado, do lado de lá das pernas, ela não sabia. e se não sabendo, ela disse-me que estava a nascer, é porque estava a nascer. e ela provavelmente não sabe, mas foi aquela frase que me deu a força que estava a precisar para realmente aceitar que ia ser ali e que eu conseguia.

- segura-te aos meus braços e faz força.

era bom poder dizer que naquele momento de expulsão estava ciente e calma e a aproveitar o momento. não estava. será que alguém está numa situação destas? mesmo que sendo planeado (um parto sem epidural)? estava a gravar tudo, isso sim. não quis agarrar-me. e fui buscar forças àquele sítio sem nome que as mulheres e mães as vão buscar. o meu menino vinha mesmo aí. o bombeiro repetiu

- levanta as pernas.

conseguia lá eu levantar as pernas a fazer força ao mesmo tempo? nem conseguia sentir ou saber onde estava o neurónio para dar ordem aos músculos para levantar as pernas.

e ali, tudo ao mesmo tempo, tudo isto na mesma contração, senti o bombeiro a levantar-me a perna direita, ao mesmo tempo que continuava a fazer a força infindável que treinei tanto durante a gravidez da D, senti o S descer a alta velocidade e nasceu.

primeiro pensamento (durante o final da força) : “sacana que já me rasgaste”. segundo pensamento: “se a bombeira não te agarrasse nascias na sala, em vez do hall”. senti-o pequenino, senti que todos paravam de respirar à excepção de mim própria e senti uma felicidade e alívio enormes. a J passava-me as mãos pelos meus ombros e braços, a chorar e a dizer

- está tudo bem R
- eu sei, eu sei.

a verdade é que não sabia, naquela resposta não sabia que ele tinha nascido com o cordão a dar duas voltas ao pescoço. não sabia que aquilo que os profissionais mais temem nestas situações é o enorme risco da criança precisar de ser aspirada e eles só terem um pequeno desentupidor a vácuo. sentia que estava tudo bem. mas quando ela me disse que estava tudo bem, já eles tinham tirado o cordão.

veio para o meu colo rapidamente. e relembrei o que é um ser mesmo acabadinho de nascer ao nosso colo. muito quente e todo enroladinho e com um cheiro tão específico mas tão diferente do da irmã, e muito quentinho indescritível e meu.

várias pessoas me perguntaram se tive medo, como me senti por estar sozinha e mesmo quando deixei de estar sozinha, se não estava preocupada pelo A poder não assistir ao parto. naquele turbilhão, não me lembro sequer de ter pena do A não estar ali. nunca senti receio quando estava sozinha, nunca me lembrei do que o A sentiria por não estar a viver aquilo, nem de eu ficar triste por não estarmos a vivê-lo juntos. na realidade, nunca ponderei que isso pudesse acontecer. havia sempre algo na minha mente. um plano, uma estratégia a pensar. mesmo nos piores momentos das contrações, em que os bombeiros, médicos, alguém teimava em não aparecer, nunca pensei o pior, nunca receei que algo de mal acontecesse, nunca pensei no risco de ter um parto não assistido, de eu ficar mal, do S ficar mal... lembro-me de pedir a Deus para eles se despacharem, para Deus me ajudar a saber o que fazer enquanto não chegavam. lembro-me que a partir do momento que o A fechou a porta de casa, a minha mente esteve sempre a engendrar algum plano e concentrada o mais possível. mas os vários “ses” e especialmente “se algo correr mal” nunca me passou na mente, nunca sequer foi opção e não sei porquê.

depois, foi o turbilhão de hormonas. com a epidural não o senti. foi deixar de ter dores, foi falarem comigo e não ouvir, não perceber. pedirem um lençol limpo para embrulharem o S e eu insistir para usarem um sujo que estava na sala (lá fazia sentido sujar outro?!), pedirem gorros e não fazer ideia onde estavam, desmanchar-me a rir à gargalhada com o bombeiro, pedirem para tirar uma selfie e só ouvir na ambulância!

chegou o inem. com ar de maus e umas coisas nas mãos – pensei “mas vão filmar? não dei ordem de nada” – parecia-me as câmaras gigantes da televisão. ouvi as chaves muito perto e pedi para segurarem a porta, para o A não a abrir à bruta (que iria bater em nós). e o bombeiro abriu.

- tenha calma que a sua mulher e o seu filho estão bem.
- o meu filho? mas já nasceu? – já com a voz a chorar.

o hall estava cheio. o meu hall não é minúsculo, mas não é gigante. estava lá eu, a J, o S, a menina-senhora bombeira e o bombeiro, o senhor baixinho e o senhor alto do inem, e finalmente tinha chegado o A. oito. mais umas malas enormes que os dois bombeiros e depois os dois médicos trouxeram.

e os médicos acharam que nós tínhamos ficado de propósito para a criança nascer em casa, e a placenta não saiu e só muitas horas depois, e muitas outras contrações depois e com a ajuda da enfermeira, é que conseguimos não ir fazer raspagem. demorou mais porque foi a mesma enfermeira que tratou do S antes de vir tratar de mim – não tinha qualquer impureza no sistema respiratório, limpíssimo. e novamente, a anestesia local não fez quase efeito e eu estive a contar toda a história do parto enquanto a enfermeira me cosia e eu sentia tudo. e perguntei pelo S e disseram que estava bem, que já vinha. e estavam sem camas disponíveis e eu no corredor, apenas aflita enquanto não o colocaram ao meu colo. fiquei várias horas no corredor do bloco de partos, mas muito bem tratada e cuidada pelas enfermeiras.

andava há uns dois dias a dizer ao A que o parto seria antes do fim-semana. dentro de mim sentia que o que estava feito, estava. e o que não estava, é como se estivesse. a gravidez foi muito pesada para mim, senti que várias coisas estavam o caos e que não aproveitei o tempo em casa. as últimas semanas foram uma correria, a arranjar imensas coisas que se estragaram exactamente naquela altura, culminando nas obras da casa-banho, quinta-feira antes dele nascer. nesse dia, após ter ido buscar a D super tarde à minha mãe, mandado os senhores embora, deitado a miúda lá para as nove da noite e ter feito limpezas até o A chegar do trabalho, quase à uma da manhã, tinha planos de continuar a limpar no dia seguinte, e simplesmente não consegui. e nesse fim-semana entreguei o tempo e a força para fazer o que fosse. era altura de deixar de pensar no que fazer e dedicar-me a escutar o corpo.

tudo começou e terminou no desenrolar de tantas coisas que, desatentos, pode não ter significado nenhum. mas para as quais gosto de olhar.

estive muito tempo de baixa na gravidez do S, não consegui fazer tanto que tinha planeado, mas consegui pensar na D, no seu crescimento enquanto menina e enquanto irmã, tentar acompanhá-la e ajudá-la na próxima fase de mana grande.

Deus ofereceu-me um parto natural em minha casa, experiência maravilhosa, mas que nunca teria coragem de o desejar sequer em voz baixa.

deixar o tempo escoar pelos dedos, não ter grande noção que, sequer estava a tirar fotografias de jeito à barriga. e eu sei o que é não ter fotos quando os irmãos mais velhos têm. “ai não me tiras fotos de jeito cá dentro, nem eco ou filme 4D? ficas com um parto maluco para contar!” e qual tratar da criopreservação? não poderia ter criopreservado!

e sobraram os medos. ao sonharmos com uma família de quatro, dois filhos, ter tanto medo de problemas de saúde. ter tanta certeza da bênção da saúde da D, e tanto medo que alguma coisa corresse mal. os medos. ter estado todo o tempo da segunda gravidez com o coração nas mãos, com quase certeza que alguma coisa errada iria acontecer. comigo ou com o S. o S teria algum problema, a epidural que não faria novamente efeito total, a minha coluna..

se estivermos desatentos podemos não reparar na quantidade de coisas que uma gravidez nos oferece enquanto pessoas. aquilo que podemos aprender. depois de tanta coisa escrita, não consigo explicar mais.

a gravidez da D ensinou-me que eu sou capaz – Deus deu-me todas as ferramentas físicas e morais para ter uma criança, mesmo com trinta anos de vida a dizerem, fora e dentro de nós, que não sabemos e não conseguimos, e com tudo o que uma gravidez ou parto possa trazer de mau, mas eu sou capaz. eu em específico, tenho forças e capacidades e eu consigo.

a gravidez do S ensinou-me que Deus está no controlo – posso ter tantos medos e teorias e sofrer por antecipação sempre que esteja com medo do tudo e do nada, mas é Deus que controla. quando tudo poderia estar a desabar com os nervos, sem o marido, sem o apoio que achei sempre indispensável do A e dos médicos (e ambiente desinfectado, cheio de máquinas e tudo o necessário), se é para acontecer, Ele sabe e cuida.

o parto do nosso S aconteceu quarta-feira, nove de julho de dois mil e catorze pelas zero horas e cinquenta e dois minutos.



domingo, 3 de maio de 2015

slowly

devagar, mesmo muito lentamente, algumas coisas começam a retomar forma e sinto algum alivio.

conseguir finalmente voltar a colocar a cortina do meu quarto, diminuir drasticamente a serra de roupa para passar que existia (sem ficar a sentir que estive o fim-semana dedicada à roupa..

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