domingo, 15 de agosto de 2010

anel


as primeiras recordações que tenho da minha avó são de natais, de tardes de domingo (ou seria de sábado?) a brincar na quinta... de fotografias amareladas que já não sei bem se estava lá ou não.. das pernas inchadas, de nos chamar, em gritos esganiçados, quando estávamos na parte da horta na iminência de pisarmos algo que estava a crescer, ou a brincarmos com alguma coisa que não devíamos, ou a roubar cenouras enterradas e a correr a escondermo-nos para sacudir a terra e as comermos, ou a zangar-se mais a sério quando saíamos de casa com o cabelo molhado, ou quando eu e a minha irmã ficávamos a dormir no quarto ao lado da cozinha dos meus avós e ficávamos horas a falar, com risinhos abafados pela almofada... "meninas, pouco barulho", lembro-me da minha avó a dobrar meticulosamente as folhas de embrulhos para as guardar, ou os risos a brincarmos com os gatos pequenos, ou a refilar, entre sorrisos, com o meu avô quando ele (sempre) lhe fazia alguma judiaria, "ai homem!!"... tenho saudades do meu avô.

hoje estive com a minha avó. senti-a cansada e desconfortável. é a segunda vez seguida que estou com ela mas que não a vejo a brincar como costume.

os olhos e as brincadeiras sempre me brilharam. muitas vezes, as últimas boas vezes, comecei a pensar, como é que ela o faz. sinto-a há vários anos à espera... no entanto, consegue tantas e tantas vezes brincar com as mais pequenas coisas, com um humor tão subtil e espectacular, nos momentos mais inesperados. e questiono-me como é que ela consegue. depois de uma vida sofrida, uma juventude abandonada, tantos abortos espontâneos, que a faziam sofrer e ser mal falada. como é que com uma idade já forte, e sempre (ou quase) acreditando que partiria primeiro do que o meu avô, acabou por ter de se despedir dele, quando, após tantos avc's, os olhos dele deixaram de a reconhecer, após ter perdido um filho tão querido.. após ter deixado de fazer tantas coisas sozinha, como simplesmente comer sem se engasgar, ou deitar-se na cama... como é que ainda se consegue brincar quando não se faz nada, há vários anos, sem ser estar à espera do dia?

- avó, porta-te bem..
- olha filha, e tu porta-te mal!

com um sorriso lindo nos olhos!

hoje peguei-lhe na mão suave e fragilizada. linda. sempre a vi com aquela aliança, e com aquele anel sobreposto, já sem algumas das pedrinhas. tenho que lhe perguntar o que é aquele anel.

tem dias em que nos reconta histórias. tem dias em que lhe mostro o meu álbum de casamento, de há dois anos, e ela não se lembra... nem se lembra da cor do vestido de casamento dela, que a minha mãe diz que a cor era muito parecida com a do meu vestido.

penso muitas vezes em perguntar-lhe se se arrepende de alguma coisa, e se me quer dar algum conselho para a vida. mas sinto que é egoísmo de minha parte, que já é tarde demais, porque ela vai pensar que eu também estou à espera..

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